quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008


Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (Tim Burton, 2007)

Sinopse: depois de ser mandado à prisão por 15 anos, por um juiz que desejava sua esposa, o barbeiro Benjamin Barker retorna à Londres em busca de vingança.


Já faz tempo que Tim Burton é reconhecido por seu universo de referências consistente e original, um estilo Burton que hoje é imitado sem cerimônias por todo e qualquer filme de fantasia que repise o território da fábula negra. Se em Os Fantasmas se Divertem ele já delineava uma versão anárquica das histórias de assombração, é em Edward Mãos de Tesoura que seu touch ganha forma. Estão ali o rigor narrativo da fábula, a forte influência do expressionismo alemão e o gosto (ainda incipiente) por situações entre a doçura e o terror, que se aprofundaria em seus trabalhos posteriores. Junto ao diretor, Johnny Depp dá forma também um modo de trabalho que se articula entre esses dois pólos: o ator se tornou mestre em causar empatia encarnando personagens de caráter duvidoso.


Em Sweeney Todd, Burton realiza, pela primeira vez, um musical propriamente dito. Se em Noiva Cadáver a música figurava como elemento chave de uma narrativa estruturada nos diálogos, neste filme as cenas mais importantes são em forma de cantoria. Não se vê exageros, porém. Tim Burton, além de um esteta, é também um contador de histórias, e nunca engendra uma dilatação excessiva do tempo, tão comum em filmes do gênero, que paralisam o enredo para bombardear o espectador com seqüências musicais tão delirantes quanto intermináveis. Nenhuma fala é desperdiçada, e a história prossegue mesmo (e principalmente) durante as músicas.


Aqui não há diálogo com o videoclipe, como se vê em Moulin Rouge: as músicas cumprem uma função dramática bem definida, ao permitir certas licenças poéticas impraticáveis em filmes dialogados. É interessante, por exemplo, como Burton (seguindo a receita do musical encenado, diga-se de passagem) utiliza as partes cantantes para fazer algo proibido por todos os manuais de roteiro: os personagens, como em um ópera, expõem sem rodeios suas necessidades e intenções, falando quase diretamente ao espectador. O uso dá à narrativa um andamento particularmente interessante, que se aproveita da peculiaridade do gênero para enfiar cabeças falantes no roteiro sem problemas de consciência.


Dada a sua reconhecida competência, falar de fotografia e direção de arte em Tim Burton é arriscar o lugar comum. A Londres antiga, suja e escura, não poderia estar mais perfeita. Neste filme, no entanto, acrescenta-se ao fetiche do diretor pelos cenários construídos um uso de recursos de computação gráfica que leva adiante seu universo estético. Em uma determinada cena vê-se um mar mais azul que o mar, uma praia mais praia que a praia, em um trabalho de cores e texturas que beira a abstração.


A palavra para definir Johnny Depp neste filme é consistência. Impossível capturar um plano sequer em que ele não seja plenamente Sweeney Todd, o barbeiro demoníaco. Ele está, de fato, assustador, e seu personagem deliciosamente coerente. Nada de homem perturbado aqui. Só o que o move é o desejo de vingança, puro e simples. As cenas em que o personagem e sua companheira de maquinações, a também excelente (e cada dia mais dark) Helena Bonham Carter elaboram planos de vingança são tão cruéis quanto deliciosas. Bem conduzido, o espectador compartilha, sem culpas, da maldade permitida aos personagens, residindo aí grande parte do apelo do filme. As observações do barbeiro e do juiz a respeito da humanidade elaboram um conceito de moral muito peculiar, pelo qual ambos pagarão: segundo eles, todos os seres humanos merecem a morte. O filme, maliciosamente, nos leva junto com eles para o julgamento final.


Talvez este seja o mais sólido dos filmes de Burton. Seu estilo não se encontra anestesiado por qualquer necessidade estranha. Os personagens são tomados por uma exigência interna inegociável, e caminham, sem concessões, em direção ao seu destino. O encerramento firme revela uma obra coesa, que não deixa qualquer rebarba, imprimindo efeito cortante, profundo, pleno. Por isso tudo, Sweeney Todd se notabiliza como uma tragédia moderna, no sentido estrito do termo.

4 comentários:

Saulo Dourado disse...

Acho que, se quisesse, você convenceria meu pai a ver Priscila, A Rainha do Deserto. Prolixa e bem fechada a sua crítica, velhinho. Meus tapas no ombro.

Davi Lopes Ramos disse...

Seu pai ainda não viu Priscila, a Rainha do Deserto?? Que absurdo! Será o tema de minha próxima crítica... passa o link pro véio!

André Setaro disse...

Leia meu comentário sobre o filme de Joel e Ethan Coen no seguinte endereço:

http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI2404293-EI6791,00.html

Álvaro Andrade disse...

Muito boa a crítica, velho.
Emergenciou minha vontade de assistir.

Sou lá do QG. A propósito, foi bacana a primeira reunião.

Abraço.