quadro: Os Amantes, de René Magritte
- Lia?
- Sim?
- Eu não te amo.
- Como assim não me ama?
- Eu tava olhando pra você, aí deitadinha, lendo seu livro, e de repente percebi que eu não te amo.
- Mas quando você disse o contrário?
- Nunca.
- A gente tá junto há quanto tempo? Um mês e meio?
- Um mês e meio.
- Não acha um pouco precipitado?
- Pra dizer que não te amo?
- Sim.
- Talvez eu tenha pulado alguma etapa, mas não sei bem qual...
- Que tal aquela parte em que você diz que me ama?
- Não me pressione. Eu já disse que não...
- Não precisa repetir.
- Mas o que você quer que eu diga, então?
- Não sei, mas não isso.
- E você, me ama?
- Você não tem o direito de pergunt...
- Ama ou não ama?
- E se eu disser que sim, o que você vai achar disso?
- Eu já disse que não...
- Eu sei. Eu sei.
- Mas eu gosto muito de você.
- Tá bom.
- Adoro transar com você.
- Sei.
- Seu corpo é o mais perfeitamente belo que já ví.
- Mas você não me ama.
- É.
- E precisava deixar isso claro assim, na hora de dormir?
- Foi.
- E agora eu posso dormir?
- Pode. Mas não me abrace muito.
- Porquê?
- Porque abraço na hora de dormir é só pra quem eu amo. E eu não te amo.
- Você tinha que repetir?
- Você perguntou “porquê”.
- O que você quer que eu faça?
- Fique ali no cantinho.
- Junto da parede?
- É.
- Mas tem uma infiltração na...
- Eu sei...
- Porquê eu não posso mais dormir abraçadinho?
- Eu já disse...
- Tá, eu já sei. Me empresta o travesseiro?
- O de ganso não.
- O outro.
- Pode ficar.
- Brigada.
- Tá gostando?
- É até fresco aqui.
- Você está gostando?
- To, sim. Brigada.
- Não quero mais que você fique aí.
- Porquê?
- Porquê um dia eu vou amar alguém, e esse alguém é que vai ficar aí.
- Mas não vai sobrar lugar nenh...
- Vai pro chão.
- Mas tá frio.
- Eu desligo o ar.
- Mas...
- Eu já disse. Desce.
- Me empresta um lençól?
- O chão tá bom?
- Sabe que até gostei? Assim, com ar desligado, fica gostoso.
- Sai daí.
- Mas pra onde eu vou então?
- Não sei.
- Eu fiz alguma coisa de errado?
- É claro que não. Você sabe que eu te adoro. Apenas não te amo.
- Mas praonde eu vou?
- Eu não sei. Vai pra junto das pessoas que eu não amo. Tem um monte delas por aí.
- Mas tá tarde.
- Eu sei.
- Vou pra sala, tá bem?
- Tá.
- Tchau.
- Eu to ouvindo você chorar.
- Desculpe.
- Pare com isso.
- Mas eu...
- Pare!
- Eu vou pro banheiro...
- Boa idéia.
- O que você tá fazendo aqui?
- Dá licença. Preciso urinar.
- Não posso olhar?
- Não. Só pode olhar quem...
- Eu olho pro outro lado. Tem problema não.
- Tadeu?
- Sim?
- Eu queria te falar um negócio.
- Diga.
- Mesmo com tudo isso, eu queria dizer que, do fundo do meu coração, eu te amo.
Tadeu abre um sorriso.
- Mesmo mesmo?
- Mesmo mesmo.
- Você me ama?
- Amo.
- Mesmo eu fazendo isso tudo com você?
- Mesmo você fazendo isso tudo comigo.
- Mas porque?
- Porque sim. Porque eu te amo.
- Eu sei, Tadeu. Vamos pra cama agora?
- Vamos.
4 comentários:
comecei a ler achando que era um diálogo divertidozinho meio l.f. verissimo. terminei de ler pensando que é profundo como o amor verdadeiro (se é que existe, óbvio - fatos devem ser sempre detalhadamente explicitados).
Será que é nosso destino atingir o pico de criação apenas quando falamos disso?
de fato, originalidade não é o forte da literatura jovem brasileira. é que somos ou uns marginais, ou uns românticos, ou os dois.
abração!
Cruelmente delicioso de se ler Davi... Sinto falta de textos seus, dessa natureza romanticamente sordida.
Abraço.
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