A situação é a seguinte: você está conversando com aquele seu amigo do cinema e o tema é, como sempre, filmes. Você fala a respeito dos últimos que assistiu, daí o amigo pega o fio da meada e continua. Uma boa e agradável conversa, permeada pelas fofocas do meio e um ou outro comentário pessoal. De repente, sem aviso prévio, seu amigo lembra-se da última grande revelação cinematográfica do século. Pára tudo, como quem pede autorização antes de um grande anúncio, e subitamente você é agraciado com a narração de um conto digno do Olimpo, materializado na Terra por algum semi-deus das lentes. Ao final, vivamente impressionado, você está satisfeito, pois o amigo contribuiu para aumentar o seu cabedal de referências. Está preparado o terreno. Ele vira para você e, em tom de recomendação fraterna, dispara a frase macabra: "Tem que ver". O mantra se repetirá no decorrer da conversa, a cada vez que o interlocutor lembrar de uma passagem especialmente genial do filme.
O problema é que o tem que ver esconde uma idéia duvidosa: a de que alguém, por se julgar melhor informado com relação ao que está acontecendo no aqui e agora, pode saber o que um outro tem ou não que assistir. Veja que não estou falando de qualidade, mas de conveniência. Eu posso, por um interesse pessoal, achar que tenho que ver filmes japoneses da década de 50 por um ano inteiro, se eu assim quiser. Ou suecos, que seja. É uma escolha pessoal.
O cinema tem já uma história, e seu progresso não é uma linha reta. Existem filmes antigos extremamente avançados, assim como há obras recentes de um conservadorismo constrangedor. A escolha dos filmes que eu tenho que ver, em geral, envolve um projeto muitíssimo pessoal, de um mergulho necessário em determinado gênero, estilo, ator ou cineasta.
Além disso, nem sempre a escolha é fruto de uma relação intelectual, mas emocional. Há filmes que, por melhores que sejam, em determinado momento não convêm. A relação com a obra de arte é uma coisa muito íntima para que a escolha seja determinada por outra pessoa. Cada filme é uma aposta, um plano para duas horas de fruição, e, talvez, uma vida inteira de reflexão. Por isso, fica a dica: escolha sempre uma outra expressão, mais leve e pessoal, quando for recomendar um filme. Diga "eu acho que você vai gostar", ou "eu recomendo", ou simplesmente "achei muito bom por isso, isso e aquilo".
Que se prefira o convite, em vez da intimação. Você me fará um relato interessante que vai me ajudar a conhecer melhor seus pendores estéticos, informações pelas quais eu ficarei grato. Depois eu escolho se tenho que ver ou não. Até porquê, muitas vezes, as histórias que me contam são tão interessantes que eu prefiro nem assisti-las, por achar que a prosa do contador deve ser melhor que a do próprio filme.
ps: como não achei nenhuma foto que ilustrasse, escolhi essa que, embora não tenha nada a ver com o texto, compõe e alegra.
Um comentário:
O 'tem que ver' tem muito mais de exibicionismo auto-afirmatório que qualquer coisa.
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